terça-feira, 6 de março de 2012

O tsunami que pode afogar os keynesianos

A presidente Dilma tem reclamado insistentemente do tsunami monetário desencadeado pelos países desenvolvidos. Não sem razão. Desde que a crise estourou, há quatro anos, os bancos centrais dos Estados Unidos, União Européia, Reino Unido e Japão criaram US$ 8,8 trilhões em moeda nova. Representa uns PIBs do Brasil. Esta injeção ocorreu, essencialmente, para socorrer bancos ameaçados por devedores inadimplentes, sejam eles compradores de casas nos Estados Unidos ou Estados europeus.

Mas, por que os bancos centrais (ou seja, os próprios Estados) deveriam se preocupar em socorrer bancos? Segundo as regras capitalistas não deveria falir aquele que fez maus investimentos? Como justificar que os lucros (altos) dos bancos sejam assunto privado quando as coisas vão bem e assunto público quando há um grande prejuízo a ser socializado? Para tranquilidade dos leigos, há teorias econômicas que explicam isto. Do ponto de vista da teoria keynesiana, por exemplo, uma crise bancária geral causaria uma longa depressão econômica. Nesta ótica, o socorro aos bancos é justificado como medida de utilidade pública. Os trilhões derramados protegeriam não apenas os bancos, mas toda a economia, mesmo que esses trilhões sejam derramados enquanto os americanos perdem suas casas e os gregos os seus empregos. Um keynesiano diria que as coisas seriam ainda piores sem o socorro aos bancos.

Entretanto, o mesmo tsunami keynesiano que, teoricamente, salva as economias desenvolvidas promove algumas maldades pelo mundo afora. Os que recebem esses recursos pagando juros baixíssimos, sempre resolvem fazer um dinheirinho extra aplicando em países emergentes, nos quais os juros são muito mais altos. Entre estes países, a moda do momento é o Brasil. O tsunami de socorro bancário mundial vira, no Brasil, um tsunami de entrada de capital estrangeiro.

Na fase do ciclo em que o capital começa a entrar, ocorre um súbito milagre. Como há mais dinheiro no país, os juros caem, o crédito aumenta, o consumo cresce e o investimento o segue. O desemprego diminui e o poder de barganha dos trabalhadores aumenta. Os preços sobem, sobretudo dos serviços e dos bens que não podem ser importados, o que prejudica alguns, mas beneficia muitos outros.

Como tudo na vida tem um lado chato, a entrada de moeda estrangeira faz cair o dólar. O resultado é que nossas exportações industriais sofrem com o câmbio valorizado. O risco passa a ser um déficit nas contas externas. Mas, felizmente, no caso do Brasil os exportadores de minérios e o agro-negócio beneficiam-se com o crescimento asiático e o boom que ele provoca nos preços desses bens, compensando amplamente os efeitos negativos do câmbio. Mas o consumidor pode se deliciar com o consumo de importados e com as viagens internacionais, finalmente acessíveis a quase todos. A classe média cresce. Os industriais ficam um pouco aborrecidos com o problema do câmbio mas, como o mercado interno está em expansão, sempre se acha um jeito. E quase todos estão felizes.

O resultado político é majestoso. O governo é bem avaliado e tido como responsável por tudo. A oposição definha, fica intimidada, sem discurso e sem projeto. Uns poucos radicais começam a sonhar com hegemonia absoluta, o que é muito engraçado, porque o fato gerador dessa autoconfiança inesperada é a entrada de capital "imperialista".

Mas, conforme o ingresso de capitais vira invasão desenfreada, os problemas vão ficando mais evidentes enquanto os benefícios, aos poucos, desaparecem. Profissionais podem surfar ondas difíceis, inacessíveis aos mortais comuns, como devem ser as do Havai. Mas eles não podem surfar tsunamis.

Diante do tsunami, o governo dá sinais de nervosismo. Neste sentido, os jornais desta terça (06/03/2012) estiveram mesmo muito interessantes. A presidente Dilma culpa os países desenvolvidos pelo baixo crescimento do PIB brasileiro. Ela tem alguma razão, embora tenha, no passado, se esquecido de agradecer esses países e seus bancos centrais pela ajuda involuntária na sua própria eleição. Em 2010, o PIB brasileiro cresceu 7,5% impulsionado, entre outras coisas, pela então onda havaiana de investimento internacional.

Melhor ainda é a resposta/pergunta de Angela Merkel diante das queixas apresentadas pela presidente Dilma: "O que você gostaria que fizéssemos?". A presidente Dilma, no passado recente, pontificou sobre o tema: usar a política fiscal, algo como um grande bolsa família. Mas, a recomendação de relaxar a política fiscal não constou da resposta que Dilma deu a Merkel desta vez. Como sugerir que países como Grécia, Portugal, Espanha, Itália, França e outros aumentem gastos públicos ou reduzam impostos, se as suas dívidas são, nos dias de hoje, o centro do problema?

Nesta conversa, a presidente Dilma ficou diante de um dilema de coerência capaz de causar uma boa dissonância cognitiva. Se resolver preservar a boa doutrina keynesiana, nada há de muito fundamental a criticar no que os bancos centrais dos países desenvolvidos fizeram. Problemas de procedimentos, velocidade de esterilização e outros detalhes técnicos que são menores diante do acerto fundamental do socorro para evitar depressão. O outro caminho seria abandonar a perspectiva keynesiana (tão cara aos economistas petistas e tão constitutivas do seu pensamento) para que sua crítica fosse consistente.

Se bem conheço políticos profissionais, sei que escolhas eles fazem quanto têm que optar entre o valor intrínseco das idéias ou a conquista de votos e do poder. Nem sei se devemos reclamar disso pois, possivelmente, os políticos não seriam bons no que fazem se não agissem assim. Consequentemente, os keynesianos têm motivos para preocupações, pois o seu capital intelectual poderá sofrer uma grande desvalorização muito em breve.

O professor Belluzzo, que é um dos keynesianos mais importantes e respeitados, publicou um artigo no Valor no qual diz que "...Keynes jamais receitou déficits a torto e a direito." Sim, é verdade. Mas não tenho nenhuma lembrança importante de um keynesiano de boa cepa recomendando austeridade fiscal. Eu me pergunto, neste exato momento, qual seria a recomendação do professor Belluzzo aos governos europeus? Austeridade? Eu adoraria que ele dissesse isso.

Keynesianos geralmente propõem a teoria de que a poupança é um resíduo macroeconômico, determinado, basicamente, pelo quanto se investe. Crescimento se faria não com poupança (que até mesmo o destrói), mas com crédito, fomento estatal, emissão monetária, déficit público, expansão de moeda e endividamento público e privado, interno e externo. Os historiadores do futuro terão que esclarecer seus contemporâneos sobre a relação entre estas idéias e o ponto a que chegamos.

Eu confesso que sempre tive muita dificuldade com tudo isso. Não que lembro em que momento faltou demanda agregada em 2007 ou 2008 para a crise começar. O que me lembro é que havia uma euforia desenfreada de crédito e consumo que acabou, meio subitamente, quando a bolha imobiliária estourou. Ah, sim, disseram-me que foi a falta de regulação... Boa regulação é importante, mas foi por falta de regulação que os Estados (assim, com letras maiúsculas, como gostam hegelianos e keynesianos) europeus se endividaram em demasia?

Chegamos a uma situação na qual nós, economistas, faríamos um grande bem à sociedade se aceitássemos reexaminar nossas teorias. Claro que isso implica reconhecer alguma desvalorização no capital intelectual acumulado ao longo de muitos anos de estudo. Mas, sempre que alguém investe na direção errada, perde capital. Tanto faz se a direção errada foi uma casa super-avaliada, um título público que não será pago ou uma teoria que vai perecer. Os economistas acumularam muitos e variados conhecimento úteis e geniais, mas alguma tralha pode ter vindo junto. Capitais assim perdidos não viram poupança social de tipo algum. Mas as casas ainda estão lá, os países e seus povos também e temos muito conhecimento econômico para lidar com os problemas. Seria prudente começar por alguma faxina nos balanços dos bancos, no dos governos e nas nossas idéias econômicas.



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